Adriana Vieira
Clarice escrevia com alma, e este conto é um dos mais enigmáticos. Ela mesma
achava difícil interpretá-lo por completo. O relato em si confunde-se com a
própria vida, enigmática e misteriosa. Em busca de si mesma, a galinha vive o
reino das coisas, aquilo que Jean Paul Sartre exemplifica como o reino de para
si, sem senso de realidade, vive em sonho e em constante busca de si. Quando
se rompe a barreira do sonho e o homem vive a realidade em si, ele passa a ser
objeto. Mas o objeto é mágico como o ovo de Clarice ele é essência. E nós,
seres humanos, somos a consciência.
Talvez o suicídio seja o clímax do agente desprotegido em busca da verdade
absoluta, a procura incessantemente sem respostas. Individualista e incapaz de
entender o grande barato de simplesmente viver, e entender que o viver nas
palavras de Clarice “é extremamente tolerável viver ocupa e distrai, viver faz rir",
o suicida abre mão de viver sem respostas. A resposta está no Ovo. Melhor
deixar quieto.
Bem perto daqui uma família inteira foi encontrada morta. Coincidência ou não eu estava relendo o conto o Ovo e a Galinha de Clarice Lispector. Digo coincidência, pois há uma parte do conto em que Clarice narra sobre o suicídio, quando reflete que o agente se sente sem apoio ao acharem insuficientes as instruções recebidas. O ovo pode ter várias interpretações. Lindamente descrito, é um enigma, por ser invisível aos olhos dos agentes que o recebem. Divino, mágico, fisicamente está nas prateleiras de geladeiras, prontos para serem servidos após rompidos. Um croc e a casca se rompe, desconstruindo sua magia. A galinha distraída não percebe o que se passa, e apesar de amá-lo não o visualiza. O ovo aqui é a própria vida. De criatura passa a ser a figura do criador. O suicídio é o clímax do agente desprotegido por não se sentir respeitado pelo próximo. E outro agente em busca da verdade absoluta, a procura incessantemente sem respostas. Os dois agentes suicidas são individualistas, incapazes de entender o grande barato de simplesmente viver e entender que o viver nas palavras de Clarice “é extremamente tolerável- viver ocupa e distrai, viver faz rir”.
O conto, um dos mais filosóficos de Clarice, discorre sobre os questionamentos do
homem. A maternidade é tratada na figura da galinha, que choca e se sacrifica, a
grande cruz que a galinha carrega, a idealização, e o amor incondicional. A galinha
sobrevive o tempo inteiro, pois viver leva a morte e ela se constrange. Necessário ela
não ter consciência da existência do ovo, pois perderia o ovo. O ovo usa a galinha.
Segue Clarice em suas divagações sobre a existência. A galinha não escolhe, ela é
escolhida quando diz isso, implica a maternidade. Não se escolhe os filhos. Ela
idealiza tanto que vivem como em grande sonho, e o mal desconhecido é o ovo, sua
maior criação. Ela não reconhece o ovo. Recorro a Jean Paul Sartre, filósofo francês,
para tentar compreender a frase “o olhar é o necessário instrumento que, depois de
usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo”. Para Sartre o contato entre o ser e o objeto se
inicia pelo olhar que é constituído de intersubjetividade, através do olhar nos
remetemos ao outro e temos a consciência da existência do outro em nós. Através do
outro nos reconhecemos. Da visão ela passa a participar de sua essência. Há o
predomínio da existência sobre a essência. O ovo existe, ele não é. Em várias partes
do conto consegue-se identificar a premissa da existência sobre a essência – “o ovo
propriamente dito não existe mais... O ovo é uma exteriorização (...) O ovo é ovo no
espaço(...) O desenvolvimento do conto se dá pela visão da personagem que através
do ovo discorre sobre questões do amor e da vida. Para Sartre há dois reinos, o reino
humano e das coisas. o primeiro supõe o ser em si, idêntico a si mesmo e por isso
mesmo nada acrescenta a este mesmo homem. No conto o em si que Sartre fala é
traduzido pela visão da narradora do ovo “um dom “.Os objetos, aqui, o ovo é
essência e a galinha é dotada de consciência e está inserida no mundo das coisas. Já
o reino das coisas, segundo Sartre, é o reino do para si, que seria o da consciência
humana, que se revela “ o ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha vive como
em sonho. Sem senso de realidade ” A galinha vive como em sonho. Não tem senso
da realidade. Todo o susto da galinha é porque estão interrompendo o seu devaneio. A
galinha é um grande sonho (...) O mal desconhecido da galinha é o ovo — ela não
sabe se explicar: "sei que o erro está em mim" ela chama de erro a sua vida, "não sei
mais o que sinto. Este trecho e outros que se referem à galinha se enquadram nas
características que Sartre atribui ao "para si", ou seja, a busca do ser. A galinha, mãe,
sonha e é capaz de gostar, possui um interior riquíssimo, pensa, observa e
“desocupada e míope” simboliza o ser sobrevivendo simplesmente. Clarice prossegue
e mantém a galinha como um ser coletivo "Ser uma galinha é a sobrevivência da
galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva à morte.
Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se
manter luta contra a vida que é mortal. Ser uma galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido" A par disto tudo, a galinha, no conto, representa também um dos pontos
chaves da filosofia existencialista: a perda da autonomia humana, reduzida ao nível da
instrumentalidade. O mundo de objetos criado pelo homem puxou-o para dentro de si,
anulando sua subjetividade.
Como a galinha, o ser humano é mero "meio de transporte". "É que eu própria, eu
propriamente dita, só́ tem mesmo servido para atrapalhar". "Era só́ instrumento que eu
poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu". O ser humano, presente no
conto através da consciência da narradora, revela-se na aspiração inútil do ser. "Ter
apenas a própria vida é, para quem já́ viu o ovo, um sacrifício. Diante da existência
pura da coisa que jamais se afasta do absoluto, a narradora — personagem revela que
seu trabalho é "viver os seus prazeres e suas dores. A experiência do amor, que
segundo Sartre é o empenho em estabelecer a unidade com o outro, é também
impraticável: "Ou bem assimilamos o outro, ou somos objetivados por ele. Tal
empreendimento só́ seria realizável se nos fosse dado vencer a contingencia original
de nossas relações com o outro. Esta, porém é irredutível, e a unidade, irrealizável no
conto, Clarice reconhece que "Amor é não ter, é a desilusão do que se pensava que
era amor" Muitos outros aspectos do Existencialismo ainda aparecem no conto: "Já́ nos
foi imposta, inclusive uma natureza toda adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo
menos torna menos penoso o prazer "mergulhada no sonho preparo o café́ da manhã.
Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças (...), viver é extremamente
tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. E me faz sorrir no meu mistério". O suicídio
talvez seja a procura do mistério, por pura angústia de procurar a qualquer custo o
porquê, sem a paciência de simples e aleatoriamente sobreviver. Não sai da minha
cabeça aquela família morta, em ato de desespero, o pai matou os filhos, a mulher, e
depois se jogou em busca do inatingível. Se o ovo é puro enigma importante visualizá-
lo pois caso seja descascado ele deixa de ser ovo
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